O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, um alento à base bolsonarista ou prova irrefutável de (mais) um crime presidencial?

No dia 22 de maio de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela divulgação do vídeo referente à reunião ministerial realizada no dia 22 de abril deste ano. Essa mídia faz parte do inquérito da Procuradoria Geral da República (PGR), que investiga possível interferência do presidente da República, Jair Bolsonaro, na Polícia Federal (PF).

No vídeo de aproximadamente duas horas, estão presentes o presidente; o vice-presidente Hamilton Mourão; os ministros da economia (Paulo Guedes), da educação (Abraham Weintraub), da Mulher, da Família e Direitos Humanos (Damares Alves) e diversos outros ministros de primeiro e segundo escalão, além do ex-ministro da justiça e segurança pública (Sérgio Moro). Nesse período, foram discutidos temas de âmbito doméstico, como as ações governamentais contra a pandemia de covid-19. Ainda, foram debatidos temas da Política Externa Brasileira.

Entretanto, duas partes do vídeo que tratavam das relações Brasil — China e Brasil — Paraguai foram suprimidas, pois segundo o STF, tratavam de assunto de interesse nacional. Com isso, a parte que foi divulgada em canais como a Globo News, a Rede Bandeirantes e a CNN Brasil tratavam apenas de assuntos referentes à política doméstica.

O que chamou a atenção ao longo do vídeo não foi apenas a enxurrada de palavras de baixo calão direcionadas aos adversários políticos do presidente Bolsonaro, como os governadores de SP (João Dória) e RJ (Witzel) ou o prefeito da cidade de Manaus (Arthur Virgílio). O que, em tese, chocaria o democrático mais estoico (aqui, no contexto de firme, empenhado) foi a grande quantidade de insultos e ameaças à ordem democrática vigente.

A ministra Damares pediu a prisão dos prefeitos e governadores que implementaram o distanciamento social, alegando que esses cometeram abusos contra religiosos e contra a liberdade de ir e vir dos cidadãos que, segundo ela, tiveram seus direitos cerceados pelas forças de segurança locais, com multas e coerção física. O ministro da educação, por outro lado, pediu a prisão dos opositores do grupo político de Bolsonaro. O ministro ainda sugeriu que os juízes (com status ministerial) do STF fossem os primeiros a serem presos.

Weintraub ainda proferiu frases com teor discriminatório contra a população indígena, alegando que “há apenas um povo brasileiro” e que “odiava o termo ‘indígenas’”. No fim da sua fala, o ministro da educação defendeu que aqueles que não concordassem com sua ideia de povo brasileiro se retirassem do país. Aqui vemos um retorno ao pensamento eugenista que permeou a sociedade e Estado brasileiro no século XIX e primeira metade do século XX.

O presidente manifestou, ainda, profundo desconforto com a resistência do STF em relação às tentativas de mudança nos quadros de comando da Polícia Federal. Ele disse que não esperaria atingirem familiares e amigos dele para mexer nos órgãos de segurança. Em outra alfinetada ao Supremo Tribunal Federal, ele insinuou que caso o STF o proíba de viajar dentro do país e de se reunir com apoiadores, ele não fugiria de uma crise constitucional. Bolsonaro ainda relembrou os presentes que ele é o chefe das forças armadas e que o Exército sabe qual será seu papel a cumprir.

Além de exaltar o Golpe Civil-militar de 1964, Bolsonaro ainda defendeu políticas frouxas para o controle de armas, alegando que a população armada evitaria ações políticas indevidas. Também informou aos ministros presentes que apoiar a agenda armamentista é requisito fundamental para permanecer no cargo. Ainda, recomendou que os ministros não falem com a mídia, principalmente a Rede Globo e o jornal Estado de São Paulo. Ameaçou com a exoneração aqueles que descumprissem essa determinação extraoficial ou que fossem elogiados por essas empresas.

O ministro do meio ambiente (Ricardo Salles) disse que a mídia estava dando uma cobertura desnecessária e desproporcional em relação à epidemia de covid-19. Contudo, segundo ele, era a oportunidade para realizar mudanças na legislação ambiental sem que seja prestada contas à população.

Por fim, Paulo Guedes, ministro da economia, fez lobby para a privatização do Banco do Brasil, instituição bicentenária, agente chave para o desenvolvimento nacional, principalmente com financiamento de agro-produtores e exportadores. Depois da Petrobrás, que praticamente perdeu a sua área de refino de petróleo com a parcial venda de seus ativos, o BB é o principal objetivo da ala liberal do governo Bolsonaro. A privatização destas empresas foi tentada no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1994-2001), mas sem sucesso.

Após a disponibilização do vídeo da reunião, partidos, políticos e porta-vozes das instituições de Estado se manifestaram. Tanto os políticos citados de maneira indecorosa na reunião quanto políticos de oposição (ideológica e de oportunidade) apontaram o vídeo como prova da falta de preparo do presidente e seu gabinete quanto aos desafios econômicos, sanitários e sociais da pandemia de covid-19. Também foi apontado por Sérgio Moro e membros da bancada de oposição do governo no congresso (PT, Psol e PCdoB) que o vídeo era a prova de que o presidente teria cometido o crime de interferência política na Polícia Federal.

Já para os partidários de Bolsonaro, o clima está longe do constrangimento ou vergonha. Para a deputada federal de SC, Caroline de Toni (PSL-SC) e o deputado federal Marco Feliciano (Republicanos-SP), o vídeo ajudará Bolsonaro a obter a reeleição. Isso decorre da tese de que o que ele disse no vídeo corresponde com os anseios de quem o elegeu e que esses concordam com as teses levantadas por Bolsonaro e seus ministros. Ainda, a reunião seria a prova de que o governo está trabalhando em prol do cumprimento das promessas de campanha.

Parafraseando a articulista da CNN Brasil, Gabriela Prioli, o país após a divulgação do vídeo da reunião de 22 de abril está dividido em dois grupos. O primeiro é composto por aqueles que já faziam oposição ao governo Bolsonaro e não mudaram sua posição após tomar conhecimento do conteúdo das quase duas horas de reunião. O segundo grupo, por outro lado, é composto por aqueles que já apoiavam o governo atual e que, em algum grau, comungam com a visão de mundo e as propostas tratadas ao longo da reunião.

Do ponto de vista jurídico, não se pode dizer que o vídeo constitui prova irrefutável de interferência na PF para prejudicar as investigações em curso. Isso decorre pelo fato de que por de trás de todos os palavrões, lobby e politicagem em geral, não apareceu ação direta de Bolsonaro coagindo Moro à sabotar as investigações da PF ou permitir que essa acontecesse. Esse vídeo teria maior valor jurídico se estivesse acompanhado de documentos e mídia (vídeo, áudio, etc.) que mostrassem uma ordem direta de Bolsonaro sob Moro, o que até agora, não há. Assim, este vídeo é, por ora, uma prova circunstancial, com valor em juízo, ainda que menor que o desejado por Moro e aqueles que entendem que Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade.

Isso é reflexo de uma polarização que, desde 2014, inviabiliza o debate político. Assim, as decisões sobre o futuro do país são tomadas apenas por políticos de centro-direita (centrão) e extrema-direita (PSL e elementos bolsonaristas em outros partidos de direita), sem levar em conta o posicionamento dos partidos de oposição, todos de centro-esquerda (esse articulista entende que o PCdoB e Psol não se encontram nem à esquerda ou extrema-esquerda do espectro político). Ainda, são ignorados parcela da sociedade civil e pareceres técnicos de órgãos, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, no caso da pandemia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e dos Conselhos Regionais de Medicina (CRM).

Em um primeiro momento, fica a impressão que a divulgação do vídeo serviu mais para aglutinar e excitar a base bolsonarista do que qualquer outra coisa. Durante todo o vídeo, o que se viu foram chavões ideológicos e frases prontas a ser entregues aos “fiéis”, que não esperam menos dos seus mandatários. Mesmo que na prática o governo não construa nada de significativo, o fato de ter o seu discurso representado no cargo máximo do país constitui em algo suficiente para parte desse eleitorado, e isso Bolsonaro vem fazendo bem.

Nesse ambiente de concentração decisória, em um lado do espectro político e ausência debate público, as ações governamentais ficam sem a devida fiscalização. Isso é o ambiente perfeito para a corrupção endêmica e corrosão em longo prazo das estruturas de Estado. A aproximação do Governo com o Centrão (Dem, PP, MDB, PTB entre outros partidos menores) aumenta os temores do cenário descrito acima acontecer.

Para evitar o desgaste com sua base, já que uma das promessas de campanha foi a não negociação com a “velha política”, é provável que novos escândalos pontuais e o uso massivo de fake news contra figuras de oposição de esquerda e medidas de combate à pandemia aconteçam. Enquanto isso, o presidente da Câmara (Rodrigo Maia), entende que “não há clima” para a abertura de um processo de impeachment. Já o inquérito da PGR, já em curso, pode acabar em pizza. E assim caminha esse país. Paralisado, dividido e sem perspectiva, ao menos até as eleições municipais, em outubro de 2020.

Fontes utilizadas: [1], [2], [3], [4], [5] e [6].

Revisado por Ana Itagiba

Deixe um comentário