Wakanda e as Relações Internacionais Parte 2 – O lugar da África nas Relações Internacionais

Iniciado com o primeiro texto sobre aspectos introdutórios,  no “Wakanda e as Relações Internacionais – Parte 2” enfocaremos na África e as Relações Internacionais. É sempre bom falar sobre esse recorte porque é o que me motiva desde o final da minha graduação a estar na área de Relações Internacionais pesquisando o continente africano. E alguns pontos têm que ser ressaltados em relação a isso.

Como abordado no texto anterior, é interessante fazermos uma reflexão sobre o lugar da África nas Relações Internacionais. Todas as perguntas elucidadas anteriormente seguem por um caminho de questionamento do porquê o continente ainda é marginalizado nas agendas de pesquisa do mainstream do curso. Quando eu comecei a graduação em relações internacionais, em 2009, eu não tinha nenhuma matéria específica sobre África e seu universo: relações intracontinentais, política internacional, integração regional, economia, questões domésticas, conflitos, saúde e outras temáticas que podem ser aprofundadas. É importante ver que há uma pluralidade de caminhos a seguir para estudar mais a fundo a África, não limitando-se apenas a temas transversais a pobreza, conflito e fome.

Como exemplo de enfoques, ainda na graduação eu me aproximava de Ruanda, um pequeno país situado na região dos Grandes Lagos. Tendo contato com a história da guerra civil, do genocídio, me fez perceber o quanto eu ainda não sabia nada sobre o país e queria saber mais sobre como a sociedade estava vivendo contemporaneamente. A pergunta que me vinha na cabeça era: “depois de passar pela guerra e por 20 e poucos anos estarem em um processo de reconstrução, como as pessoas conviviam com outras que, possivelmente, mataram seus familiares?” Isso me motivou a estudar uma Ruanda que, às vezes, não temos acesso tão facilmente a trabalhos em português.

Além da experiência na pesquisa, foi somente no estágio em docência do doutorado que eu tive uma matéria oficialmente sobre relações internacionais da África e do Oriente Médio, que eu teria mais contato com a historicidade do continente e suas interações internas e com o sistema internacional. Foi uma matéria que contribuiu muito para os meus estudos africanos, me dando uma base teórica para aprofundar mais sobre diferentes temáticas e ter acesso à diferentes autores, os quais não tive contato no mestrado. Esse encontro com a África oficialmente destacou a importância de existirem matérias nas graduações que estudem outros continentes do que apenas Europa e América do Norte (mais especificamente Estados Unidos). É necessário expandir as linhas que interconectam os continentes, países, para entender a dinâmica de interdependência em sua totalidade. 

Relacionado a isso, eis que questionamos o lugar da África nas Relações Internacionais. Onde (e como) está a África durante as Grandes Guerras? E durante a Guerra Fria? E no contexto de dissolução da bipolaridade? Pergunto isso porque, como mencionado, muitas vezes vemos acontecimentos fragmentados, enfocados em somente uma área geográfica e não entendemos que, dependendo do fenômeno, expande-se para outras regiões. 

Com o objetivo de situar a África na história das Relações Internacionais, alguns autores dividem a historicidade africana em três períodos: o período pré-colonial, a presença europeia no continente e os Estados independentes. Geralmente são vistos poucos elementos da história pré-colonial, dando uma primazia a Conferência de Berlim (conhecida como a Partilha da África, oficializando a ocupação europeia no continente) de 1884-1885. A partir disso, “parece” que a história da África começa a ficar relevante para os pesquisadores, uma vez que houve a importação dos modelos de organização do Estado moderno europeu. É importante ressaltar que a presença europeia no continente não quer dizer que não houve resistência local em relação a isso, intensificando-se nas décadas de 1950 e 1960, que teve como consequência os processos de independência.

Entre o segundo e terceiro período, a África foi um espaço geopolítico disputado pelos Estados Unidos e União Soviética, ou seja, uma zona de influência dos dois polos de poder. Já no terceiro período os Estados africanos, recém-independentes, tentam se adequar às exigências do sistema internacional vigente, tentando lidar com uma infraestrutura estatal muitas vezes precária e com pouco capital humano qualificado para gestionar o aparato estatal.  As relações com o Terceiro Mundo, que são afirmadas com o Movimento dos Países Não Alinhados e o papel da Organização da Unidade Africana (OUA, que em 2002 torna-se União Africana), são significativas na continuidade das fronteiras coloniais dos novos Estados africanos e da integração entre esses países. Nesse cenário, as crises políticas desestabilizam as estruturas estatais que já não eram fortes, fazendo com que boa parte das questões externas do sistema internacional penetrassem no ambiente doméstico.

De um cenário de crises econômicas e de ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, muitos países africanos mergulham mais ainda em suas crises, potencializadas com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. O fim do período de disputas bipolares contribuiu para que a África perdesse sua posição estratégica no conflito, de forma a gerar um vácuo de poder – os Estados Unidos, não tendo mais sua contraparte para balancear, perde o interesse de se envolver em conflitos no continente. Com isso, conflitos internos pela tomada de poder do Estado se intensificam, gerando inúmeras guerras civis, como é visto nos casos de Ruanda e da Somália.

A África volta mais uma vez aos holofotes nos anos 2000, quando a linha do crescimento econômico de alguns países africanos começou a ter números significativos do que países do mundo desenvolvido. O período, marcado como o renascimento africano, transmite muito da vontade dos Estados africanos de seguirem um caminho anticolonial, de andarem com as próprias pernas. O crescimento dos países foi uma força motriz para, mais uma vez, o continente olhar para ele mesmo e fortalecer laços intracontinentais.

Tratando-se especificamente da relação entre Wakanda e as Relações Internacionais, alguns elementos são interessantes de serem destacados. O Pantera Negra não representa apenas um super herói, mas também um chefe de Estado. Essa posição caracteriza a busca dos interesses nacionais em relação a outros países, evidenciada pela política de isolamento de Wakanda por conta do recurso natural Vibranium. Esse recurso natural possibilita um poder de barganha para Wakanda, diferentemente de muitas realidades africanas que vemos hoje em dia. A grande questão desse cenário é se Wakanda deve continuar sua política de isolamento, para salvaguardar o Vibranium de ser usado com más intenções, ou de gerar desenvolvimento em outras partes do mundo, especialmente nações que são interligadas pela diáspora africana.

Além desses aspectos, o filme mostra como é a organização interna do país, baseada em diferentes tribos que vivem em harmonia, sob a forma de um Conselho e a figura do rei. Com isso, é possível visualizar a relação entre o doméstico e o internacional, em que ambas as esferas são influenciadas mutuamente. Exemplo disso é a cena final do filme, em que o rei T’Challa discursa na Organização das Nações Unidas (ONU), equilibrando os interesses nacionais de Wakanda (proteção do país e do Vibranium) e as necessidades do cenário externo (ajudar outros países com tecnologia e conhecimento). Além disso, o fato de Wakanda estar na ONU caracteriza a participação de um país africano, em posição de destaque, em uma organização intergovernamental internacional (OIG), criada primordialmente para a arquitetura de segurança internacional (instrumento de estabilização do sistema internacional).

Todo esse recorrido histórico retrata a importância de estudar a África e olhar para dentro do continente e para seu lugar no sistema internacional como todo. Há ainda muitos temas para serem explorados para além dos estereótipos; há muitos caminhos e soluções para serem percorridos que não sejam em uma posição de assistencialismo. Poderíamos ficar (e muito) discutindo sobre um emaranhado de linhas que conecta os países africanos e o cenário internacional, mas a proposta do texto é dar uma pequena reflexão e incentivo a conhecer mais do universo africano. Sendo assim, o objetivo foi cumprido.

Até a terceira e última parte do texto e Wakanda para sempre.

Revisado por Caroline Corrêa

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  1. Republicou isso em My Ruanda Brasile comentado:

    Meu segundo texto no Diário das Nações – a continuação

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