As cinco crises atuais listadas pelo papa Francisco

Na segunda-feira, 08, o papa Francisco recebeu, no Salão das Bênçãos da Cidade do Vaticano, o Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé. A audiência com os mais de 180 embaixadores dos países com os quais o governo da Igreja Católica mantém relações diplomáticas constitui um dos eventos mais importantes do ano no pequeno Estado pontifício. Além de ser uma ocasião na qual o papa pode apresentar sua visão e análise da atual conjuntura sociopolítica mundial e das principais crises e conflitos que assolam o globo, bem como indicar as prioridades da política externa da Santa Sé para aquele ano específico, o encontro remete às próprias tradições diplomáticas do papado, considerada a mais antiga e primeira forma de diplomacia.

Nos primeiros séculos da história da Igreja, quando os papas ainda possuíam as chaves dos reinos do céu e da Terra, os Pontífices Romanos começaram a enviar seus representantes aos Concílios Ecumênicos da Europa, sendo o primeiro na cidade francesa de Arles, em 314 D.C. Mas é somente no final do século XV que a diplomacia papal institui suas próprias missões permanentes, a exemplo de outras Cidades Estados italianas, tendo sido o primeiro Núncio Apostólico – que correspondente à figura de embaixador –, enviado à corte do Doge de Veneza, em 1488. Ainda hoje, a Santa Sé é a única instituição religiosa no mundo que possui a prerrogativa de manter relações diplomáticas com outros Estados e Organizações Internacionais.

E no seu mais recente discurso sobre o estado da humanidade, o papa Francisco afirmou que a pandemia de COVID-19 pode ou ser um catalisador para mudanças positivas ou uma maneira de enfraquecer ainda mais um mundo já sobrecarregado por diversas crises: “ou continuar na estrada que seguimos até agora, ou iniciar um novo caminho”, pontuou o líder da Igreja Católica. A opinião, porém, não é novidade, e já permeou discursos do Pontífice ao longo de todo o ano de 2020. Defensor de um mundo mais justo e inclusivo e crítico ferrenho do que chama de “economia da exclusão”, que teria se tornado mais evidente com a pandemia, o papa costuma chamar atenção para o fato de que “de uma crise não saímos iguais: ou saímos melhores ou saímos piores”.

Em um discurso de quase uma hora – um dos mais longos do seu pontificado até então –, Francisco foi muito além das questões espirituais, religiosas, éticas e morais, sobre as quais os seus predecessores costumavam se debruçar quase que exclusivamente, e listou uma série de crises mundiais que foram provocadas, acentuadas ou trazidas à luz pela pandemia do novo coronavírus. Ao fazê-lo, traçou uma firme critica à “globalização da indiferença” e, ao mesmo tempo, consolidou o seu papel como um ator central da política externa atual. Para o papa, o mundo está doente, mas não só por causa do vírus. Além de sanitária, as crises são também ambiental, econômica e social, política e dos relacionamentos humanos.

Diante dos diplomatas, Francisco renovou seu apelo aos líderes globais para garantir “acesso universal” aos cuidados básicos de saúde, como os imunizantes já produzidos contra o vírus da COVID-19 e condenou o “nacionalismo da vacina”, que pode prolongar os efeitos da pandemia no mundo. O papa ponderou que a “preocupação com o lucro não deve guiar um campo tão sensível como o da saúde”, referência ao fato de que, segundo a Aliança da Vacina do Povo – coalizão de organizações internacionais –, países ricos que representam apenas 14% da população mundial compraram o equivalente a 53% das vacinas mais promissoras. Em 2020, a defesa das vacinas anti-coronavírus como um bem público mundial guiaram boa parte da política externa da Santa Sé, com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) e da própria Organização Mundial de Saúde (OMS).

E é na esteira da crise sanitária que Francisco encontra espaço para abordar outra questão sensível à sua agenda internacional, e um dos pilares da sua atuação global: o meio ambiente. Para o Pontífice, a crise ambiental nos obriga a reconhecer que “não é só o ser humano que está doente, mas também o planeta Terra”. Como consequências diretas e indiretas das mudanças climáticas e da exploração indiscriminada de recursos naturais, o papa cita as secas, inundações, a insegurança alimentar e as doenças respiratórias, produtos de uma “inação prolongada”, afirma. Para superar essa crise, aponta que o único caminho é o multilateralismo, a cooperação internacional no cuidado da nossa “casa comum”, termo que aparece no subtítulo da sua Encíclica de 2015, “Laudato Si” (“Louvado Sejas”), sobre o meio ambiente.

A possibilidade de ações multilaterais, porém, de acordo com o Santo Padre, está sendo prejudicada por uma “erosão” do Estado de Direito “mesmo em países com uma longa tradição democrática”. Sem citar nenhum caso específico, condenou os personalismos e afirmou que democracias devem evitar a tentação de glorificar uma personalidade política individual. Segundo o papa, “manter vivas as realidades democráticas é um desafio deste momento histórico”, disse, pontuando a necessidade da busca pelo “diálogo inclusivo, pacífico, construtivo e respeitoso entre todos os componentes da sociedade civil em cada cidade e nação”. Falou, também, sobre o recente golpe de Estado em Mianmar, no sudeste asiático, lamentando que o “caminho para a democracia” empreendido nos últimos anos tenha sido “bruscamente interrompido”.

Ainda na esfera política, o líder da Igreja Católica também aproveitou a ocasião para falar sobre o polêmico Acordo Provisório entre a Santa Sé e China para a nomeação de Bispos, alvo de críticas do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e sua administração, afirmando tratar-se de um “entendimento de caráter essencialmente pastoral” e não político. O Pontífice também manifestou sua satisfação com o Tratado para a Proibição das Armas Nucleares da ONU, que entrou em vigor no dia 22 de janeiro deste ano e é considerado pelo papa como uma etapa importante no caminho para um mundo livre de armas nucleares. Apelou, ainda, para que os governos empreendam maiores esforços para o desarmamento, e pediu pelo fim do conflito na Síria.

A geopolítica do pontificado de Francisco, vale lembrar, o primeiro papa latino-americano da Igreja Católica, é marcada por um flagrante deslocamento ideológico, menos eurocêntrico e mais favorável à emergência das periferias do mundo, da região conhecida como Sul Global. O papa, que se descreve, inclusive, como vindo “do fim do mundo”, em referência à sua distante Argentina, não possui a dívida moral que os europeus assimilaram voluntariamente ou involuntariamente em relação aos Estados Unidos, e percebe um aprofundamento da crise do Ocidente e suas instituições. Neste cenário, o Santo Padre vê as nações do Oriente do mapa terrestre, como China e Rússia, por exemplo, como interlocutores válidos por conta do vazio deixado pelo Ocidente.

Já no campo econômico, Francisco lembrou que a pandemia obrigou muitos países a adotarem medidas rigorosas de quarentenas e lockdowns, o que levou ao fechamento das empresas e escassez de trabalho, gerando um aumento da vulnerabilidade social. Com isso, crises humanitárias foram acentuadas, como o tráfico de seres humanos, a prostituição e o fluxo migratório, evidencias de uma “economia baseada na exploração e no desperdício de pessoas e recursos naturais”, afirmou. A solução para esse grave problema seria a mesma já apontada pelo papa na sua Encíclica social de 2020, “Fratelli tutti” (“Todos Irmãos”), que prega um novo tipo de economia, “a serviço de homens e mulheres, e não vice-versa”, que critica o neoliberalismo e populismo e pede por uma “nova revolução copernicana”.

Em relação à crise social, alertou que ter passado mais tempo em casa, em isolamento, também levou a “períodos mais longos de alienação” pelos computadores e meios de comunicação, com graves consequências para os mais vulneráveis, “especialmente os pobres e desempregados”, acrescentou. O papa lembrou das vítimas de violência doméstica, principalmente das mulheres, especialmente martirizadas nesse período, que “não puderam viver com serenidade na sua casa”. Exortou autoridades públicas e sociedade civil para que apoiassem as vítimas da violência na família, instituição que ainda sofre uma “crise antropológica geral”, a mais grave de todas, de acordo com o papa. Decorrência direta da pandemia, Francisco demonstrou preocupação com a “catástrofe educativa”, que evidenciou a desigualdade no acesso à educação. 

Por último, o papa finalizou o seu discurso aos diplomatas no Vaticano com uma mensagem positiva. Afirmou que “o ano de 2021 é um tempo a não perder”, e cobrou colaboração com “generosidade e empenho”. Encorajou a comunidade internacional a “salvaguardar a dignidade transcendente de cada pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus” e indicou que a “fraternidade” e “esperança” são os verdadeiros remédios para a pandemia e para os inúmeros outros males que atingem a humanidade atualmente. De um papa adepto da cultura e diplomacia do “encontro” e defensor da construção de “pontes” no lugar de “muros”, o recado que os embaixadores levam aos seus respectivos países de origem é que “aprofundar os laços de fraternidade que unem toda a família humana” é o remédio de que o mundo precisa, hoje, tanto como as vacinas.

Revisado por Luiz Eduardo Moreira

Foto: Vatican Media

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