Cinema e RI: A dimensão política do filme A Fuga das Galinhas

Por Rafael Vieira

Geralmente vistos como obras mais superficiais que apelam ao público infanto-juvenil, os filmes de animação escondem, na verdade, uma variedade riquíssima de abordagens reflexivas sobre temas muito caros às Relações Internacionais. Dentro desse gênero cinematográfico, A Fuga das Galinhas surge como um desses diamantes escondidos num universo de filmes – aparentemente – para crianças.

Um filme sentimental em sua essência, é também uma comédia que brinca constantemente com o seu contexto de galinhas falantes. A capacidade de entregar um filme divertido para as crianças, somada à pluralidade de mensagens potentes direcionadas a um público mais maduro, faz com que a obra tenha uma dimensão política substancial, digna de ser explorada à luz de debates relevantes nas Relações Internacionais.

Quais são esses tópicos e como podemos enxergar essa diversidade temática pelas lentes das Relações Internacionais?

O filme possui quatro camadas que podem ser analisadas a partir do seu desenrolar. Cada uma delas revela um tema pertinente para as RI que é exposto no filme com a devida sutileza e propensão à reflexão que esses temas demandam. Claro, tudo isso contextualizado e adaptado na metáfora do filme e na própria dinâmica narrativa do cinema.

Primeiro, há uma camada de crítica ao capitalismo e ao processo de industrialização; em seguida, podemos enxergar uma camada feminista, dialogando e refletindo sobre o papel da mulher nas sociedades ocidentais; depois, há uma camada que nos faz pensar sobre ética e direitos dos animais; e, por fim, uma camada que nos traz uma profunda reflexão sobre o Holocausto e campos de concentração no geral.

Analisemos, então, cada uma delas à luz das RI.

A fachada do capitalismo e o sonho de Ginger

Usadas simplesmente por suas capacidades reprodutivas e efetivamente encarando a morte com o processo de industrialização: poderíamos estar falando das mulheres em O Conto da Aia ou de muitas mulheres durante a história; mas não, essa é a alegoria a respeito do capitalismo que se passa com as galinhas do filme.

Seus ovos são a medida do que elas valem e, posteriormente, quando a inovação industrial permite que a fazenda passe a produzir tortas de galinha, o destino que as espera é a morte. Através desse enredo, o filme provoca reflexões sobre as consequências desiguais para os gêneros no processo de industrialização e no capitalismo de forma mais geral.

A exploração da mulher e a redução dela à uma mera máquina reprodutora revelam o entedimento de que o processo histórico de instauração do capitalismo não está dissociado do sexismo e do processo histórico de inferiorização e submissão do sexo feminino. Ao enfatizar essa relação entre capitalismo e gênero, o filme se situa numa discussão clássica do feminismo nas Relações Internacionais, que é a leitura da história e das consequências sociais do capitalismo através de um olhar focado nas relações de gênero.

Como, então, o filme se transporta dessa dimensão de reflexão acerca do capitalismo enquanto sistema para a dimensão substancial do feminismo?

O papel da mulher na sociedade: uma alegoria

De forma sobreposta às críticas sociais ao capitalismo, está a faceta feminista do filme: muito do que vemos na tela é um tributo aos movimentos feministas e suas incessantes buscas por justiça reprodutiva, fuga do domínio masculino, igualdade econômica e social, além de uma busca por independência e autonomia feminina.

A protagonista Ginger diz em certo momento do filme que as cercas não estão apenas ao redor da fazenda, mas também nas mentes de todas ali. Essa frase resume bem uma das temáticas feministas que circundam a história: a capacidade da sociedade e de uma cultura convencer até mesmo aqueles que são oprimidos e inferiorizados de que tal condição é natural e quiçá desejável.

A história do feminismo se dá no contexto de uma feroz oposição aos séculos de instauração patriarcal do modelo limitante do que é ser uma mulher e essas cercas permanecem mesmo hoje – é o que está implícito na reflexão da galinha protagonista.

Ginger, em sua heroica e idealista luta pela liberdade, não quer apenas sair da fazenda, mas também destruir as cercas que ainda se mantêm erigidas nas mentes de muitas ali. Elas pensam que aquilo que foram designadas pelos donos da fazenda é tudo que podem e devem ser. É o pensamento de que não há espaço de ação maior para elas do que aquilo que lhes foi ensinado.

O feminismo nas Relações Internacionais, em sintonia com o projeto mais geral do pós-positivismo de desafiar o status quo da área, possui esse caráter provocador de instabilidades. Ao balançar os alicerces de uma disciplina que naturaliza uma série de condições que são reveladas opressoras e injustas, o feminismo revela o seu caráter ético-normativo, com filmes como A Fuga das Galinhas capturando com singela qualidade o poder dessa desestruturação tão necessária para o avanço dos estudos de gênero nas ciências sociais.

Reflexões sobre os Direitos dos animais

Presente em um nível menos abstrato que os anteriores está a questão dos direitos dos animais. Pensemos, nesse nível, nas galinhas não como uma representação das mulheres em sociedades capitalistas e patriarcais, mas como simples animais. O filme, na tradicional estratégia hollywoodiana de antropomorfizar animais, evoca uma conscientização sobre as crueldades envolvidas num mundo onde os humanos dominam todas as outras espécies.

Através dessa relação crua de subordinação dos animais perante os humanos, o receituário do filme – em especial na cena que demonstra o processo de criação da torta de galinha – visa capturar os sentimentos da audiência para o nível de sofrimento dos animais.

Vejamos: a cena em que Ginger é salva por Rocky na máquina de tortas tem tanto elementos de ação e suspense quanto elementos de banalização e mecanicidade. A máquina é banal, mecânica, desfaz as vidas das galinhas num processo automático e repetitivo – puramente desprovido de significância. Já toda a música e a tensão presente na escapatória dos protagonistas preenche essa banalidade industrial de vida, provocando instantaneamente o sentimento de que algo vivo se perde com frequência nesses processos. Eis aí uma reflexão crua e potente sobre a vida dos animais.

Hoje vemos uma diversidade de posições sobre o tema do direito animal, tanto em ambientes domésticos como na esfera internacional. Exemplos disso são os debates sobre o abatimento de animais, a crueldade da indústria agropecuária e da indústria de frangos, os impactos ambientais do consumo de carnes e a relação do comércio internacional com o mercado de derivados de animais.

O veganismo político e o seu clamor pelo fim do uso de animais nos mais diversos produtos consumidos pela humanidade pode soar radical e até impraticável, mas a sua reflexão basilar tem tomado cada vez mais o protagonismo em debates por meio de diversas mídias – inclusive o cinema, não só com filmes como A Fuga das Galinhas e sua mensagem mais sutil, mas também com documentários que explicitam os horrores que a humanidade comete contra outros animais debaixo dos nossos narizes.

O Holocausto e a desumanização do outro

Por fim, temos mais um nível de alegoria presente no filme: a relação entre o enredo e o Holocausto, além da ideia de campos de concentração como forma de controlar inimigos ou populações que os grupos dominantes julguem como inferiores.

Logo nos primeiros quadros do filme, vemos o arame que circunda o claustrofóbico lar das galinhas. Ginger e seu desejo insaciável pela liberdade encontram, muitas vezes, resistência das galinhas que vivem ali, que aceitaram a sua situação e tentam achar a felicidade no meio da miséria em que se encontram.

Viktor Frankl, em seu livro Em Busca de Sentido (1946), reflete sobre sua experiência em campos de concentração nazistas e a tentativa de encontrar significado a fim de querer permanecer vivo. O grande objetivo do livro é desenvolver um método para encontrar uma razão para se continuar vivendo em uma situação de extremo desespero – como foi para ele e para muitos outros que vivenciaram os campos de concentração nazistas.

Ginger, com seu lema de conquistar a liberdade ou morrer tentando, incorpora essa busca de sentido, finalizando assim o quarteto de alegorias que o filme abarca no seu aparentemente simples enredo.

Conclusão

Capitalismo, feminismo, direito dos animais e Holocausto são quatro temas que, à primeira vista, não parecem ter relação nenhuma entre si. Mas ao enxergarmos a capacidade do filme A Fuga das Galinhas de provocar reflexões nessas quatro searas de forma paralela e igualmente rica, vemos se explicitar uma das características mais poderosas do cinema enquanto ferramenta de reflexão e de postura crítica: a sua peculiaridade narrativa e o seu elemento lúdico, fazem dessa mídia crucial para que se compreenda as diversas camadas das ciências sociais de forma efetiva no mundo contemporâneo.

Analisar filmes à luz das Relações Internacionais é, portanto, um passo que internacionalistas devem ousar dar cada vez mais e com maior frequência, a fim de, simultaneamente, enriquecer e tornar mais acessível o debate teórico e conceitual que permeia essa área acadêmica.

Revisado por Isadora Barcelos

Créditos da Imagem: AdoroCinema/Reprodução

2 comentários Adicione o seu

  1. gdhgfdjhfhjf disse:

    caralho o cidadão que escreveu esse artigo é um tremendo idiota, impressionante.

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    1. abldr disse:

      pior do que quem escreve é quem perde tempo em xingar um artigo aleatório de um blog, e pior do que essa pessoa é a que vem responder ela falando isso, ou seja, estamos os dois na merda

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